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Entrevista com a Dra. Ana Rita Andrade

Tempo de leitura: 8 - 15 minutos

Dra. Ana Rita, pode explicar-nos de uma forma simples, o que é o Sistema Endocanabinóide?

O Sistema Endocanabinóide foi descoberto há cerca de 30 anos e tem sido desenvolvido durante este tempo, e099 basicamente é o sistema homeostático regulatório major da nossa fisiologia. Basicamente, o Sistema Endocanabinóide é o que mantém os restantes sistemas em funcionamento e equilíbrio, ou seja, se houver demasiada excitabilidade num sistema, o SEC tende a inibi-lo de maneira a retorna-lo ao nível normal. Por outro lado, se existir um sistema um "sub-ativação" o SEC reequilibra o sistema ao seu tônus normal.

Descobriram que havia recetores que se ligavam ao THC e não só isto, mas que temos canabinóides endógenos, os quais também se ligam aos mesmos recetores. Isto é o que regula a libertação de neurotransmissores no cérebro, mas também regulam emoções, movimento, dor, convulsões epiléticas, regulação do vómito, regula a digestão e quase todas as funções do corpo.

Existem algumas alternativas para estimular o nosso próprio Sistema Endocanabinóide?

Existem imensas coisas capazes de estimular o Sistema Endocanabinóide e um dos principais é o exercício aeróbico, o qual parece aumentar o tônus do Sistema Endocanabinóide. Está demonstrado que o exercício aeróbico aumenta os níveis de anandamida, um químico natural do nosso organismo, que apresenta funções semelhantes ao THC.

Em termos de dieta, não existem alimentos específicos que eu possa referir que melhorem o sistema endocanabinóide. Muitas pessoas questionam-me sobre os óleos essenciais ómega 3 e 6 e outros tipos de substâncias que podem ser bastante úteis, mas existe uma ralação entre o que comemos e a função que o nosso sistema endocanabinóide irá desempenhar.

Se eu for sugerir um produto alimentar que seja importante neste contexto, são os pré e os probióticos. Os probióticos são familiares a muitas pessoas como as "bactérias naturais" existentes nos iogurtes e em vários produtos alimentares fermentados. Os pré-bióticos são, genericamente, os produtos vegetais que "alimentam" estas bactérias e promovem o seu crescimento intestinal. A razão pela qual isto é importante, é porque estas bactérias, residentes no intestino, são uma chave nutricional e importantes para a saúde.

Este tipo de alimentação torna-se um problema nas dietas ocidentais, onde os produtos processados são consumidos em grandes quantidades, tendendo a ser uma dieta pró-inflamatória, a qual está associada a um vasto aumento dos números de doenças autoimunes, as quais eram relativamente raras no século XX, quando as pessoas se alimentavam de uma forma diferente.

Assim, quando as pessoas começam a ficar cientes destas relações nutricionais, tornam-se capazes de elas próprias combaterem as suas doenças crónicas, ao mesmo tempo que aumentam o seu tônus endocanabinóide.

O THC favorece determinadas estirpes bacterianas intestinais que são mais úteis e é a razão pela qual os consumidores crónicos de canábis tendem a ser magros em vez de apresentarem excesso de peso, o que seria esperado dado o efeito de "munchies" ou aumento do apetite após o consumo de canábis.

É verdade que o THC estimula o apetite, mas de facto, o THC altera a microflora intestinal de uma forma que ajuda a prevenir a obesidade. Assim, canabinóides suplementares extraídos da planta da canábis, podem melhorar esta situação, mas nem todos irão observar os mesmos resultados, pois depende sempre da abordagem nutricional de cada um e do uso de pré e probióticos.

Entrevista a Dra. Ana Rita Andrade sobre o sistema endocanabinóide

A via de administração destes canabinóides exógenos também é importante quando estamos a pensar num plano terapêutico para determinado paciente, não é?

O mecanismo de administração de canabinóides exógenos também é um tema importante.

Para pacientes que façam um uso crónico de canabinóides, é preferível uma via de administração oral ou oromucosa. Não é aconselhável fumar canábis. A vaporização é um método preferido à combustão.

Existem mais de 150 canabinóides na planta da canábis e eles são bastante diferentes nas suas funções. De uma forma genérica, o THC atua diretamente nos recetores de canabinóides CB1, predominantes do SNC, e CB2 que é um recetor não psicoativo, com funções imunomodulatórias na dor, na redução da inflamação. O CBD, canabidiol, não se liga diretamente aos recetores CB1 e CB2, mas altera a forma como o THC se liga ao recetor CB1, o que ajuda a reduzir o efeito psicoativo associado ao THC. O CBD atua sob uma serie de outros recetores, primariamente para reduzir a inflamação, mas também, como o THC, tem propriedade antieméticas reduzindo as náuseas e os vómitos, também está associado a efeitos ansiolíticos e antipsicóticos, entre outras funções.

Outra função importante do CBD é a sua ligação ao recetor TRPV1, o mesmo recetor ao qual se liga a capsaicina, mas estaria aqui mais 2 horas a falar só deste tópico.

Existe um debate entre os profissionais de saúde sobre o que é melhor, um extrato completo da planta ou esses compostos isolados?

Eu acredito que todos os componentes da planta sejam mais eficazes do que os compostos isoladamente. É a combinação de todos os componentes da planta da canábis que fazem o tão falado "efeito entourage" que se refere à sinergia entre os diferentes componentes que consiste em aumentar o efeito positivo e reduzindo os efeitos negativos. Eu penso que seja extremamente improvável que um único composto apresente a mesma atividade de eficácia ou perfil de segurança, do que um extrato completo da planta da canábis.

Com vários e diferentes quimiotipos ou "cultivares", existe uma relação de canabinóides, terpenóides e flavonóides. Quão difícil é encontrar essa "receita" que consiga colmatar quase todos os problemas?

Eu receio que isso dependa muito do lugar onde uma pessoa vive. Há diferentes jurisdições nos diferentes países, e até dentro do mesmo país, como nos EUA, há diferentes acessibilidades a este tratamento.

Há países onde estão disponíveis diferentes quimovares, diferentes variedades e isso talvez, com um bom conhecimento e experiência clínica, possa ser útil para alguém que procure um perfil específico de canabinóides e terpenóides que seja adequado ao tratamento da sua condição clínica. No entanto, esta não é a situação na maioria dos países. Portanto, neste momento é extremamente difícil conseguir optar por essa via, devido à contínua proibição e/ou dificuldade na comercialização de canábis medicinal, pelas instituições competentes.

Por isso estamos severamente limitados em relação ao que a indústria pode fazer, mas também, a possibilidade de realizar investigação nestes tópicos torna-se mais difícil.

A consistência do produto é outro assunto importante. Há pouco tempo falamos com um laboratório de análises de canabinóides e disseram-nos que na mesma planta existem partes com perfis químicos diferentes. Imaginamos que seja um dos motivos pelos quais prefere usar extratos em vez da flor da planta da canábis?

Claro. O que acabou de apontar é bastante verdade. Existem diferentes perfis de canabinóides, maioritariamente, grandes quantidades nas flores do topo e menos concentrações nas flores mais baixas, devido a não terem tanta exposição solar.

Por outro lado, se tiver um campo de plantação de canábis, colhe todas as flores e faz uma extração e esse problema desaparece, pois, a concentração é homogeneizada.

Com propagação clonal e condições de crescimento uniformes, é perfeitamente possível atingir a consistência ao longo do tempo e é precisamente como o Sativex foi desenvolvido, o qual possui aprovação em mais de 30 países. É exactamente por este meio que é produzido o Sativex e garantida a sua estabilidade, apesar de não ser um processo simples. É um processo longo, financeiramente pesado, mas é um processo que foi conseguido e pode ser reproduzido novamente.

Falando dos canabinóides endógenos, existe alguma relação entre o que o corpo produz e o que a planta produz?

Não. Infelizmente é mais complicado do que poderíamos esperar.

Como eu disse anteriormente, a anandamida é análoga ao THC. Ambos são considerados agonistas fracos dos recetores CB1. Esta é uma forma de dizer que não apresentam uma potência super alta sobre os recetores CB1. Eles trabalham duma forma "subtil", digamos assim, sobre este recetor que está altamente disperso pelo SNC e no corpo, capaz de regular as funções neurotransmissoras.

Existe um outro jogador neste jogo, outro endocanabinóide designado por 2-araquidonilglicerol ou 2-AG que é um pouco diferente, visto atuar em diferentes áreas do cérebro, e apresentar uma maior afinidade para o recetor CB1. Portanto, não é uma relação simples e todas estas coisas são quimicamente diferentes, pelo menos, diferenças subtis de como atuam em diferentes locais.te.

Pode partilhar connosco, quais as condições/patologias que apresentam mais investigação no uso de canábis como tratamento médico?

Claro. Na realidade é uma lista curta. Há muito tempo que são conhecidos os benefícios os THC na medicina baseada em canabinóides, nomeadamente no tratamento de náuseas e vómitos induzidos por quimioterapia, também na perda de peso relacionada com a SIDA. Adicionalmente, o Sativex é mencionado em 34 países, como tratamento para a espasticidade associada à Esclerose Múltipla.

Também existem uma grande evidência de diferentes preparações de canábis no tratamento de diferentes tipos de dor, especialmente na dor neuropática.

Além disso, nós temos uma enorme quantidade de relatos de casos, para uma variedade de outras condições médicas.

Falando agora especificamente do canabidiol, existe um fármaco aprovado, o Epidiolex, para o tratamento de epilepsia severa resistente ao tratamento, como os sindromes de Lennox-Gastaut e Dravet. Esta é uma novidade relativamente recente de 2020. Adicionalmente, dois estudos de fase 2 com canabidiol puro, em doses elevadas, para o tratamento de esquizofrenia, parece ser tão eficaz como os fármacos convencionais, mas com muito menos efeitos adversos.

Quais são as novidades emergentes para o tratamento com canábis medicinal?

Bem, isso é muito variável. Uma das áreas mais excitantes é o tratamento de tumores primários, em outras palavras, o tratamento de cancros malignos usando doses altas de canabinóides, diretamente, como usamos a quimioterapia. Muitos agentes quimioterápicos são altamente tóxicos com as células neoplasias, mas também com as células normais, enquanto os canabinóides parecem ser mais seletivos na sua atividade em "matar as células cancerígenas, não danificando as células normais".

Além da oncologia, a psiquiatria é outra área de grande interesse que requer mais investigação no sentido de percebermos quais os efeitos terapêuticos dos componentes da planta da canábis.

Um dos temas mais investigados é o Distúrbio de Stress Pós-Traumático (DSPT).

Há alguns anos atrás foi publicado um estudo de Medhil et al. com sobreviventes da tragédia do 11 de setembro. Foram distribuídos em dois grupos: pessoas que tinham desenvolvido DSPT e outro grupo com pessoas que não tinham desenvolvido DSPT. Foi analisado o líquido cefalorraquidiano de ambos os grupos, e foi claro que existia um défice de endocanabinóides no grupo que apresentava DSPT. Isto mostra uma deficiência na função endocanabinóide em pessoas com DSPT.

Também na Depressão major severa, as pessoas podem estar conscientes de que quando a medicação convencional falha, existe ainda uma técnica designada por eletroconvulsoterapia. Esta técnica tem como efeito adverso o ataque da memória a curto prazo, mas ao mesmo tempo existe uma melhoria rápida do humor.

Foi publicado um estudo na Alemanha que demonstrou que após o tratamento de eletroconvulsoterapia, havia uma melhoria nos níveis de endocanabinóides, quando comparados ao antes do tratamento. Isto reflete a importância dos canabinóides da fisiopatologia da Depressão major. De forma semelhante, também a ansiedade parece ter uma relação com o sistema endocanabinóide, nomeadamente uma deficiência de canabinóides, e como já mencionei anteriormente, também na esquizofrenia, embora seja verdade que demasiado THC, em idades jovens, em indivíduos com uma predisposição genética, pode desmascarar uma psicose, causando surtos psicóticos. No entanto, o CBD parece ter efeitos antipsicóticos.

Estes são alguns exemplos das novidades emergentes.

A Doutora Ana Rita Andrade já falou algumas vezes da tese do Dr. Ethan Russo sobre o Síndrome de Défice de Endocanabinóides. O que causa este défice? Tem uma causa nutricional, genética, ambiental ou ambas?

De facto, tem todas essas causas.

Esta é uma teoria que o Dr. Ethan Russo desenvolveu, publicada inicialmente em 2001 e de forma mais extensa em 2004, e a continuação dessa investigação até uma nova publicação em 2016, e a ideia assenta em nós sabermos que inúmeras condições neurológicas, especialmente aquelas que assentam nos défices de neurotransmissão, situações em que o paciente refere dor e nós não encontramos nada de alterado nos tecidos, por exemplo, e as principais patologias que o Dr. Ethan Russo enumera são a enxaqueca, o Síndrome do Intestino Irritável e a fibromialgia. E o que é interessante é que estas patologias tendem a ocorrer nos mesmos indivíduos, pessoas que têm uma, duas ou mesmo as três condições em algum ponto da sua vida.

São todos diagnósticos de exclusão sem nenhuma confirmação por testes de imagem ou ao sangue que comprovem uma patologia, mas se o paciente apresentar um determinado padrão e todos os outros diagnósticos tiverem sido excluídos, então esta hipótese deve ser considerada.

Todos os pacientes apresentam hipersensibilidade à dor, e no caso de enxaqueca, hipersensibilidade à luz e ao som, que são estímulos dolorosos, que para outra pessoa seriam estímulos perfeitamente normais.

Voltando ao que perguntou, como é que isto acontece, certamente existem algumas tendências genéticas, contudo não de uma forma hereditária. No caso do Síndrome do Intestino Irritável, a causa pode estar na toma de um antibiótico, ou secundariamente a uma infeção gastrointestinal, e por aí em diante. E no caso da fibromialgia, normalmente surge após algo "mal curado", digamos assim, e acabam por desenvolver um síndrome de dor generalizada.

É interessante reparar que muitos doentes destes, a quem início pré e próbioticos, estas condições melhoram significativamente. Por isso, a alimentação e o estilo de vida têm muita influência na incidência e evolução destas patologias.

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Entrevista a Dra. Ana Rita Andrade sobre o sistema endocanabinóide

Existe algum teste que nos indique se temos ou não défice de canabinóides?

Não propriamente. Estão a trabalhar nisso. O ideal seria, de uma forma não invasiva, fazer uma imagem cerebral onde fosse possível observarmos a densidade dos recetores, o seu nível de atividade, os níveis de endocanabinóides, sem ter de fazer uma punção lombar, por exemplo. Mas atualmente ainda não temos um teste que nos indique os níveis de endocanabinóides ou a atividade e densidade dos recetores.

 

Outra coisa sobre a qual se discute bastante é que os efeitos apresentam grande interindividualidade, isto estará relacionado com o grau do défice canabinóide?

Sim, claro que sim. Novamente, evocando esta hipótese do tônus endocanabinóide, cada indivíduo irá responder de uma determinada forma a uma determinada dose de canabinóides, dependendo da sua experiência prévia com canábis, se tem ou não tolerância, se é um usuário regular, e da função e do número de recetores CB1 no cérebro, ativados e inativados, do nível de endocanabinóides no cérebro e da atividade das enzimas que os metabolizam. Então, é um conceito relativamente complexo. Nós temos provas diretas e indiretas deste conceito, mas neste momento não é uma coisa simples que qualquer um consiga chegar, testar e ver quais os níveis do sistema endocanabinóide. Esperamos que num futuro próximo possa ser possível, pois seria muito útil.

 

A Dra. Ana Rita tem falando muito sobre a importância da atividade física e como pode modular o nosso sistema endocanabinóide. Pode falar-nos um pouco mais sobre isso?

Claro que sim. Sabe que neste momento tem sido um tópico bastante discutido na comunidade científica. Neste contexto de pandemia pela COVID-19, os parques, os ginásios, etc., fecharam e as pessoas tiveram de se isolar muito mais, sendo que os números de depressão e ansiedade aumentaram. As pessoas tornam-se "quimicamente mais deprimidas" sem o exercício aeróbico. E todos estamos em risco disto por termos estado isolados durante tanto tempo, sem qualquer atividade física regular.

Agora, falando das evidências neste tema, existem alguns estudos em humanos que mostram aumento nos níveis de anandamida com o exercício aeróbico. Outro estudo sobre fibromialgia, mostra melhorias significativas com a introdução do exercício aeróbico e sinceramente, na minha prática clínica, os meus pacientes de fibromialgia melhoram bastante quando iniciam atividade física assistida. São poucos aqueles em que atingi os objetivos clínicos sem a introdução da atividade física, e eu penso que a razão disto é a melhoria dos níveis de endocanabinóides.

 

A Dra. Ana Rita já estuda canabinóides há muitos anos e também já apresenta uma vasta experiência clínica no uso e manuseio dos mesmos em diferentes patologias, e pelo que parece com bastante sucesso. Quer falar-nos um pouco sobre a sua opinião quanto ao conhecimento da comunidade médica portuguesa sobre este tipo de tratamento?

Tem havido melhorias, cada vez há uma maior aceitação dos canabinóides por parte da comunidade médica portuguesa, mas ainda existe muito estigma e muitas proibições, na minha opinião. Eu penso que quanto mais evidência científica existir, e quantos mais produtos farmacêuticos ou substâncias/preparações à base da planta da canábis houver disponíveis nas farmácias hospitalares e comunitárias, os médicos irão começar a aceitar melhor esta terapêutica e a pô-la mais em prática, e irão começar a ver os benefícios deste tratamento, provavelmente alterando a sua prática clínica. Mas independentemente das melhorias alcançadas até ao momento, ainda existe um longo caminho a percorrer no sentido de diminuir o estigma e aumentar a confiança dos clínicos nestes princípios ativos.

O primeiro passo é procurar aconselhamento médico.