Este é um texto introdutório que mostra alguns aspetos relacionados com o Sistema Endocanabinóide (ECS – Endocannabinoid System).
Iremos começar por perceber qual a hipótese clínica e a teoria subjacente à Deficiência Endocanabinóide Clínica. Em segundo plano iremos abordar as principais patologias que se enquadram nesta hipótese teórica, como o Síndrome do Intestino Irritável (SII), as enxaquecas e a fibromialgia, juntamente com as comorbilidades deste síndrome, a atribuição errónea de um diagnostico psicossomático, e a relação que existe com estados de ansiedade e/ou depressão.
O primeiro conceito sobre défice de endocanabinóides, foi publicado em 2001, numa secção de um livro e posteriormente em artigos mais completos em 2004 e 2016.
A hipótese é que todos os humanos têm um tónus endocanabinóide subjacente, refletido nos níveis funcionais de endocanabinóides, nomeadamente de anandaminda e 2-AG, a sua produção, o seu metabolismo, a relativa abundância de endocanabinóides na fenda sináptica e o estado dos recetores de canabinóides. A teoria é que existem certas condições clínicas, independentemente de uma pessoa nascer com patologia ou se adquirir mais tarde durante a vida, que quando o tónus endocanabinóide entra em défice, produzem sintomas fisiopatológicos.
Pensando no processo de défice clínico de endocanabinóides, as patologias candidatas a enquadrarem-se neste quadro são a enxaqueca, a fibromialgia e a SII, sobre as quais nos vamos debruçar, mas existem outras que podem ser consideradas como tendo uma etiologia no défice do tónus endocanabinóide.
Enxaqueca
A fisiopatologia da enxaqueca é processo bioquímico complexo e está intimamente envolvido com o sistema endocanabinóide. A anandaminda produz a potenciação da função do recetor de serotonina 5-HT1A e a inibição de 36% da resposta dos recetores 5-HT2A, o que tem uma correspondência benéfica na enxaqueca aguda e no tratamento de enxaqueca crónica com serotonina 1A e serotonina 2A, respetivamente.
Os sintomas associados às enxaquecas, incluindo a fotofobia e a fonofobia, sugerem uma hiperalgesia central, onde estímulos normais que não deveriam causar dor, causam dor e severa.
Pesquisas recentes sugerem que a anandaminda é ativa em modular o tónus endocanabinóide ao nível da substância peri-aquedutal, onde pensamos ser a gênese da enxaqueca. Além disso, a estimulação desta área cerebral produz analgesia ou hiperalgesia, mesmo sob bloqueio farmacológico.
Fibromialgia
A segunda condição clínica que iremos abordar é a fibromialgia, um diagnóstico controverso, mas frequente.
Essencialmente é considerada como um “Síndrome de Hipersensibilização Central”, comumente associado a dor neuropática.
Também é conhecida por produzir uma “hiperalgesia secundária” o que é sugestivo da necessidade de bloqueio de recetores NMDA, para contrariar o défice analgésico da serotonina.
Também existe um estado de hiperalgesia excessiva e estados similares correlacionam-se com hipofunção endocanabinóide a nível central.
Adicionalmente, os endocanabinóides a nível espinal reduzem esta dor excessiva, sugerindo a necessidade de tratamentos com canabinóides para este tipo de distúrbios, com esta “barragem” da via aferente primária que incluem a alodinia, hiperalgesia visceral e síndromes dolorosos regionais complexos.
Síndrome do Intestino Irritável (SII)
A terceira condição clínica associada ao défice endocanabinóide e o SII, muitas vezes considerado de “cesto do lixo dos diagnósticos”.
Diversos mecanismos estão envolvidos, como as alterações da motilidade cólica, a hiperalgesia visceral (resposta dolorosa excessiva a um estímulo menor), alterações no microbioma (comunidade de microrganismos que vive no intestino), fatores genéticos e ambientais, sequelas pós-infeciosas e distúrbios psicossociais.
É uma síndrome bastante frequente e também assenta principalmente numa “hipersensibilidade visceral”, muitas vezes refratária aos tratamentos convencionais.
Sabemos hoje que, a motilidade gastrointestinal (GI) está sob o controlo do tónus do Sistema Endocanabinóide.
Gosto de dizer que “o cérebro e o Intestino falam a mesma língua”, ou seja, quando há uma alteração num, o outro também vai sofrer alterações associadas.
Patologias como depressão e ansiedade também são comorbidades comuns na SII, e em 2003 sugeriram que os canabinóides poderiam ter um papel importante no tratamento desta síndrome.
Estas 3 condições clínicas: Enxaqueca, Fibromialgia e Síndrome do Intestino Irritável, são todos estados de hiperalgesia, de diagnóstico clínico, sem características patológicas específicas nos tecidos e sem exames de diagnóstico. Tendem a ser condições co-mórbidas.
Doentes com enxaqueca e/ou com cefaleia diária crónica, frequentemente também sofrem de fibromialgia e cerca de 1/3 dos doentes com SII cumprem os critérios de diagnóstico de fibromialgia e vice-versa. Portanto, as pessoas podem apresentar uma ou as três patologias simultaneamente, durante a vida.
Os doentes que costumam apresentar as 3 patologias, normalmente são doentes do sexo feminino, jovens, com um quadro ansioso/depressivo associado, que muito provavelmente irá ser diagnosticada como tendo uma “síndrome de somatização”.